Falar de Dostoiévski é sempre muito perigoso

| segunda-feira, 2 de maio de 2011

Falar de Dostoiévski é sempre muito perigoso, devido ao conflito de pelo menos duas naturezas. Em primeiro lugar e quase que obviamente, a dele: pantanosa, que escor­re por entre os dedos, completamente cerrada na contradição. Do outro lado, aquela de quem escreve crítica, geralmente ansiosa por algum encaixe, dotada de um certo hábito de dividir (ou englobar) as mais diversas manifestações. Quase que impossível união das duas, digamos, atitudes perante à vida, ou simplesmente à literatura. Mas existem lá e cá alguns pontos de contato.

É claro que Dostoiévski não escreveu nenhum “O que é arte?”, mas aquele sorri­so cúmplice, de canto de boca, de vez em quando aparece, durante alguma passagem de romance que supostamente não guarda nenhum ponto de vista ou teoria ou tentativa de organizar o mundo num pensamento mais ou menos claro. Essa última postura, aliás, é quase uma piada, sendo Fiódor Fiódor. Apesar disso, o que parece um contrasenso pode se tornar até mesmo cabível. Explico.

As questões filosóficas, morais, não estão num capítulo qualquer que se dedica a elas: encontram-se na vulgaridade quotidiana, permeando textos, correspondências, ma­nuscritos... e toma aqui “vulgaridade” seu contorno quase primário - o das ações corriqueiras. Um pouco porque, arrisco, o tal homem comum a Dostoié­vski não era simplesmente mais um severino; era, para além, capaz de agir humana e grandiosamente. Daí se extrai a possibilidade de as questões “elevadas” não tomarem seu lugar habitual, aquele pedestal inatingível aos meros mortais, aquele livro pomposo que de cujo título se apreende algo como “grandiosa teoria explicativa e elucidadora dos proble­mas da humanidade”.

Tampouco seus romances têm a pretensão revolucionária ou iluminista. Há de se adicionar a grande desconfiança em relação à representação - e a questão da “realidade” desempenha papel tônico -, e, como que por conseqüência, às falsas histórias e falsas narrativas, que se pretendem analisar a tudo e a todos gravemente e a sério do alto de suas torres de marfim. Da mesma maneira, geralmente impondo a poucas personagens que porventura obtiveram algum destaque histórico (seja um indivíduo, uma classe ou uma época), a capacidade, como que de antemão reservada a esses iluminados, de serem pródi­gos em suas atitudes.

Não existem teorias edificantes na prosa dostoievskiana. Tampouco simplificações grotescas, a fim de tornar o mundo menos caótico, ou pelo menos explicável segundo algum raciocínio maravilhoso. A verdade é que Dostoiévski não parte do pressuposto de que a não-linearidade das coisas mundanas seja necessariamente ruim: o caos não é neces­sariamente caótico e a doença não é necessariamente doentil.

Seu universo tende a apresentar uma lógica interna muito forte e o que em outros contextos seria invariavelmente absurdo, ali adquire contornos verossímeis, praticamente inquestionáveis. Contorcionismos de enredo, construções típicas em que encontros improváveis se dão para o agrado da finalidade específica da es­tória específica, a mocinha encontrou o mocinho, a malvada morreu, etc. etc. aparecem de quando em quando. Mas elas próprias adquirem seriedade e passam quase despercebidas: são parte desse mundo irreal e daquela lógica interna estranhíssima e, apro­ximo-me muito do anacronismo: exatamente por isso, encerram em si a realidade.

E então, me parece que estava certo Dostoiévski quando dizia que perseguir uma verdade fotográ­fica era perseguir uma mentira. Depois de tudo o que já foi dito sobre o autor e sua obra, tal afirmação parece adquirir conotação ainda mais abrangente: ele tanto não persegue a mentira dos textos folhetinescos (não se trata simplesmente de forjar um enredo mirabo­lante) quanto não se pretende realista em construções do tipo Madame Bovary acordou às onze horas e fazia calor, soprava uma brisa leve mas sufocante e balançava a ponta da cortina de renda.

Tal qual o erro pueril de um pintor moderno que se pretende realista ao retratar com muito esmero alguma natureza morta, a Dostoiévski, (de maneira análoga, mas pelo contrário) não interessava o trabalho mecânico dos escritores, suas descrições interminá­veis e impressionantemente detalhistas. Os tempos já não são os mesmos, a arte já não deve ser a mesma, inventaram a máquina e Michelângelo não seria Michelângelo senão no quinhentos.

Não se deve negligenciar, contudo, que existam construções de personagem de coerência aparente com aquilo que Dostoiévski acreditava ser “realismo” ou mesmo ca­racterísticas que já foram tidas como autobiográficas neste ou naquele trecho. Um escritor não é nunca absolutamente impessoal e aquela mencionada “lógica interna estranhíssima” também não é gratuita. Mas o cuidado deve sempre prevalecer, existe uma linha muito tênue entre os críticos deste escritor que merecem ser levados a sério e aqueles que aca­bam forjando algum manifesto filosófico próprio, independente de Dostoiévski, mas que se esquiva, ou tenta se esquivar, fazendo menções à sua obra. Como que uma versão um pouco grotesca, mas ainda assim análoga, ao famoso discurso sobre Púchkin, em que Dostoiévski não falou senão a respeito de si mesmo, usando de base, ou como mote inicial o assunto “Púchkin”. No fim das contas, manifestação do ego do crítico muito mais que algum juízo do objeto criticado.

O simbolismo, e notadamente o russo, foi importante luz a algumas facetas da obra dostoievskiana que foi ignorada por aquela primeira intelligentsia - o foco era sempre social, quase que materialismo dialético aplicado e não muita coisa além disso. Impossível entendê-lo somente através de processos históricos objetivos, mas é sempre bom lembrar que a subjetividade também só é capaz de abordar um dos lados do proble­ma.

E assim o é, se não toma-se o devido cuidado - plim! eis o maravilhoso mundo de explicações simplórias e de flertes com o misticismo: “Eu acho muito interes­sante pensar os tipos dostoievskianos como mote para análise psicológica do ser humano, seu realismo, por exemplo, mostra muito claro aqueles traumas vividos por cada um de nós...” ou ainda “Dostoiévski se dizia doente e por isso escrevia, por isso ia até o fundo da alma humana porque aí residiria a cura” ou tantas outras interpretações que de tão equi­vocadas, são até engraçadinhas. Claro que a postura acadêmica prevalece na maioria das vezes. Mas é preciso, antes de tudo, notar que papel e tinta a Dostoiévski não é divã. É preciso notar que não se trata de “curar” os doentes.

Existem, sim, aproximações com questões de ordem psicológica, mas de maneira notadamente existencialista (bem) antes de psicanalista ou freudiana - os existencialistas, e sobretudo os franceses, buscavam tratar dos problemas filosóficos, por assim dizer, como quem vê que o buraco é mais embaixo, que a vida é mais complexa que esta ou aquela teoria linear pode(ria) supor. Igualmente não se trata de discutir se M. Mersault matou os árabes porque possuía tal ou qual caráter porque não chorou no enterro de sua mãe. Que possam existir ligações entre todos esses fatos, sem dúvidas, mas não se deve tomá-las tão diretamente assim, como se a menor distância lógica entre dois pontos fosse uma reta. Certamente não o é em literatura. Menos ainda em Dostoiévski.

De qualquer forma, como dizia anteriormente, meu sorriso cúmplice veio justamente em algures de “Crime e Castigo” (1886), primeiro, vestido de Raskólhnikov, o "Rodka"; quase que neologismo derivado de “cisão”, historicamente como os dissidentes da Igreja Ortodoxa e de forma mais abrangente, os embebidos em contradição. Bref: aquela humanidade que tem a míni­ma consciência de si mesma. E é ele quem diz ao senhor Lújin, cuja intelectualidade é em muito forjada e além disso, noivo de sua irmã (de Raskólhnikov, não dele mesmo) que: desenvolva o senhor, até as suas conseqüências, aquilo sobre que acaba de dissertar, e verá como se pode matar toda a gente. Ao que acaba de dissertar, não existe interesse; a verdade é que não existe importância.

O que acaba de dissertar são todas aquelas coisas frívolas, fraquinhas mesmo, que se vê sempre por aí. E, sendo imaturas (porque freqüentemente o são por definição: o importante é a pompa), se tidas a sério, e até o suposto profeta ficará atônito, conclui-se que se pode matar toda a gente. Não se trata, mais uma vez, da “verdade” imediata; ninguém pretende discutir se é justo matar toda a gente, etc, etc. Acredito que nem mesmo Dostoiévski (que já foi acusado à pena de morte posteriormente transformada em pena de trabalhos forçados na Sibéria - mas esse é outro assun­to) perderia muito do seu precioso tempo - e era preciso escrever para ter de comer e comer para ter condições de escrever - em dar rodeios sobre a validade, seja do “olho por olho”, seja do direito romano, seja da pena de morte estadunidense que mata muitos inocentes e que, acredito eu, sequer existia àquela época.

E depois de tudo, parece que a única crítica possível a Dostoiévski é aquela que segue os mesmos caminhos emaranhados de sua prosa, dando voltas, sendo cuidadosa e muito próxi­ma da antítese. Sempre cautelosa, indispensavelmente atenta e escusando-se a todo momento.

por: Mariana Leme

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